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Carne viva

  • Foto do escritor: spjjorufsc
    spjjorufsc
  • 14 de abr. de 2023
  • 7 min de leitura
Movimentos repetitivos, temperaturas negativas ou muito altas, manuseio de ferramentas letais, elevado nível de umidade e intensa pressão por produtividade são a rotina dos trabalhadores de frigoríficos

Camila Eloisa, Júlia Duvoisin, Kalil de Oliveira, Tainara Flores



Pandemia aumentou a precarização do trabalho na agroindústria | Foto: The Image Bank/Getty Images/Divulgação



Pierre, imigrante do Haiti que vive em Florianópolis, lembra do tremor que sentiu ao ver imagens de seu conterrâneo Dmijy Coesmeus sendo agredido por seguranças dentro do frigorífico da BRF de Chapecó (SC), em 2021. Apesar de nunca ter pisado no oeste catarinense, o haitiano mantinha contato com mais de 50 pessoas que escolheram o local como forma de recomeço. Pierre sabe o motivo da busca por moradia em uma “terra tão longe”, em suas próprias palavras, já que a viagem de ônibus de Florianópolis a Chapecó chega a durar mais de 14 horas. A região concentra boa parte das oportunidades de trabalho na agroindústria no Brasil.

Somente no ano de 2020, quando Pierre chegou ao Brasil, a indústria frigorífica foi a que mais empregou refugiados no país. Foram 5,82 mil novos contratos para estrangeiros em unidades de abate, segundo dados do Observatório das Migrações Internacionais, do Ministério da Justiça. Santa Catarina é destaque no ranking dos estados que mais geram empregos para esta população, reflexo da sua forte atividade agropecuária, de acordo com esse estudo. Porém, as condições de trabalho que os refugiados encontram muitas vezes os deixam com vontade de voltar aos seus países. “Quando vi a mão do segurança no rosto do Dmijy, me senti violado porque sou imigrante. A agressão também foi em mim, porque vivo da coletividade. O tipo de emprego que encontramos aqui me faz pensar que toda a luta para chegar no Brasil foi em vão”, desabafa Pierre.

Além da presença haitiana nos frigoríficos de Santa Catarina, os senegaleses formam uma força de trabalho única nesses locais, por conta da religião muçulmana. A antropóloga Janaína Santos, que pesquisa a condição de vida desses imigrantes, explica que a agroindústria procura trabalhadores que conheçam o abate Halal, técnica realizada separadamente dos abates convencionais, dentro das normas dos países islâmicos. Mas, uma vez contratados, a maioria dos senegaleses encontra uma situação de vulnerabilidade. “Eles passam por mais violações do que os brasileiros, pois além do preconceito racial e da exploração, existe a barreira linguística que os impede de compreender inteiramente seus direitos”, diz Janaína.

Pierre e Janaina compartilham da mesma opinião em relação à falta de auxílio dos órgãos governamentais aos refugiados, tanto na questão do idioma quanto na compreensão completa de suas garantias legais. “Temos os mesmos direitos dos brasileiros, mas não sabemos usá-los. Não sabemos como reclamar, não entendemos como funciona. O imigrante chega e pega qualquer tipo de trabalho. Hoje, percebo que muitas pessoas nos frigoríficos estão naquela condição do PTP.” Pierre se refere ao artigo terceiro do Protocolo de Palermo, instrumento internacional que estabelece padrões mínimos na luta contra o tráfico de pessoas. São eles: a ação, os meios e o propósito. A ação é o recrutamento, o transporte ou a estadia. Os meios são as formas de coesão ou o valer-se da situação de vulnerabilidade. O propósito é a exploração. Quando esses três elementos estão juntos, a condição de trabalho se torna uma conduta criminosa. Esses critérios caracterizam o tráfico de pessoas e, portanto, determinam quem são as vítimas.

Vírus da produção


Se as condições de trabalho dentro das agroindústrias já eram precárias, com a pandemia de Covid-19 tudo piorou. A gerente de saúde do trabalhador da Diretoria de Vigilância Sanitária da Secretaria de Estado de Saúde de Santa Catarina, Regina Pinheiro, informa que os maiores índices de contaminação do vírus foram registrados em localidades com forte presença de indústria frigorífica. “[Em apenas] um município do interior de Santa Catarina, no boletim de 30 de abril de 2020, 77,33% dos casos de Covid-19 eram de trabalhadores de frigoríficos.” A reportagem perguntou qual é o município, mas, até a conclusão deste texto, em 14 de abril, não obteve resposta.

Nos primeiros três meses da pandemia, o Ministério Público do Trabalho (MPT) apurou mais de 206 denúncias – 24 delas em Santa Catarina – e abriu 114 inquéritos por violações envolvendo a Covid-19 dentro de frigoríficos. “Muita gente ia trabalhar infectada, com medo de não receber”, afirma o presidente do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias de Alimentos da Grande Florianópolis (Sitiali), Tiago Fernandes. “Insistimos muito pela entrega de máscaras, mas tinha empresas que entregavam só duas por semana.” Como a indústria de frigoríficos foi considerada atividade essencial, foram isolados somente funcionários do grupo de risco. A emergência sanitária também contribuiu com o afastamento dos trabalhadores do sindicato. O contato pessoal, feito nos portões das frigoríficas e nas reuniões sindicais, não ocorreu em 2020 e 2021 devido ao isolamento social.

Um dos principais escândalos do período aconteceu em 7 de maio de 2020, em Seara (SC), a 31 km de Chapecó. O cacique Ronaldo Claudino, da Terra Indígena de Serrinha – onde vivem 716 famílias da etnia Kaingang –, recorreu ao MPT para garantir os direitos dos trabalhadores indígenas do frigorífico da JBS. A denúncia da Procuradoria do Trabalho de Joaçaba (SC) contra a frigorífica era em relação a uma ameaça de demissão. “Recebi uma ligação de uma profissional da JBS e informou que todos os indígenas seriam demitidos. Esses funcionários, ameaçados de demissão, se deslocam, diariamente, dentro do ônibus em torno de 5 horas diárias entre idas e vindas da empresa”, relatou Claudino ao MPT.

A JBS justificou a decisão alegando que os custos de transporte se tornaram proibitivos, por conta da adoção de medidas sanitárias para redução do risco de contaminação com o vírus. A norma extraordinária dizia que a lotação dos ônibus funcionais deveria ser reduzida a 50%. Porém, o MPT discorda que esse tenha sido o real motivo. Afinal, somente em 2019, o grupo JBS teve receita líquida de R$ 204,5 bilhões. Para os promotores, a medida “apresenta impactos negativos desproporcionais sobre a vida de dezenas de famílias indígenas e, por conseguinte, sobre o próprio bem-estar e sobrevivência da comunidade vulnerável. O impacto desproporcional da decisão sobre a comunidade indígena confirma o caráter discriminatório e ilícito da conduta patronal.”



 

Perdi meu braço, mas é segredo


Cláudia tinha uma rotina de trabalho comum da indústria frigorífica: refilava 4,8 coxas de frango por minuto ao longo de 7h20min de labuta diária na JBS/Seara de Forquilhinha (SC). São 2.112 coxas por dia. Com o intenso movimento repetitivo, desenvolveu doenças no braço direito como síndrome do túnel do carpo, tendinite e sinovite. A dor ficou insuportável. Ao consultar um médico, descobriu que não havia mais cura. Precisou ser amputada. Toma duas doses diárias de morfina até hoje, medicação utilizada para tratar dores crônicas. Quem conta sua história não é ela, mas Célio Elias, vice-presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Alimentação de Criciúma e Região (SINTIACR). A operária não pode conceder entrevistas porque se comprometeu num acordo de indenização firmado com a fábrica.


 

De acordo com o Instituto Mapa, em 2022, a indústria frigorífica respondeu por 97,5% da receita cambial brasileira. No mesmo ano, segundo dados da própria JBS, a empresa obteve o maior faturamento da sua história, com R$15,5 bilhões de lucro líquido. Mesmo com o recorde, o trabalho nas indústrias segue sendo um dos mais perigosos no país. Segundo o artigo “Acidentes do trabalho nos frigoríficos brasileiros”, publicado em 2022 pela Research Society and Development, entre 2014 e 2020 houve aumento de 24% nos acidentes em frigoríficos. Movimentos repetitivos, locais com temperaturas negativas ou muito altas, manuseio de ferramentas letais como facas, elevado nível de umidade e intensa pressão por produtividade são a rotina dos operários que atuam na indústria brasileira da carne, de acordo com Tiago Fernandes, do Sitiali.

Na Grande Florianópolis, relata o líder trabalhista, a carga horária diária desses profissionais varia de 7h20min a 8h48min. “São muitos movimentos por minutos, muita produtividade exigida. Muitos trabalhadores adoecem, principalmente com lesões osteomusculares. Pelo menos uma vez por semana há afastamento de algum funcionário por lesão”, conta ele. “Recebemos muitas denúncias pelo WhatsApp, de atraso de pagamento, assédio, insalubridade e ritmo de trabalho”.

O Sitiali também atua na fiscalização da rotina desses trabalhadores, com dirigentes dentro da própria empresa observando as condições. Tiago diz que o órgão segue a Norma Regulamentadora em Segurança e Saúde no Trabalho em Empresas de Abate e Processamento de Carnes e Derivados – NR-36, que estabelece requisitos para fiscalizar, monitorar e controlar riscos nas atividades laborais.

As disputas judiciais geralmente são complexas e demoradas. Batalhas de Davi contra Golias, nas quais as grandes corporações se defendem com times de advogados dos escritórios mais especializados em direito trabalhista de São Paulo (SP), e os operários contam com defensores públicos sobrecarregados. Mesmo com a lentidão e a balança desregulada, uma decisão sempre é tomada. Para o bem ou para o mal. Segundo a juíza Iracema Longhi, da 1ª Vara Federal de Joaçaba, no meio-oeste de Santa Catarina, existem dinâmicas empresariais intensas no setor de carnes. Algumas empresas são incorporadas por grandes conglomerados em processos de fusões e aquisições, que mudam as direções e políticas internas. Outras companhias quebram por uma série de motivos econômicos – concorrência desleal, formação de cartéis, epidemias nos animais etc – e simplesmente deixam de existir. Porém, os processos de antigos operários contra seus empregadores não desaparecem. "Costumo fazer a audiência de frigoríficos antigos, porque já fecharam e os trabalhadores ficaram sem laudo", conta.

Nesses casos, explica a magistrada, as provas costumam ser testemunhais, com relatos de ex-colegas, familiares e pessoas que trabalharam com o operário durante o período funcional. Após as oitivas, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) faz vistorias em frigoríficos semelhantes aos da época. De acordo com Iracema, são muitos os pedidos por aposentadorias de trabalhadores de frigoríficos extintos e que, normalmente, são concedidos. “As decisões costumam ser favoráveis porque as condições eram muito ruins. Ainda são. Mas o que muda é que agora usam equipamentos de proteção individual (EPIs)”, compara ela. “A maioria dos trabalhadores participava do abate de animais e esses animais possuíam agentes insalubres, como fezes, sangue, vísceras e temperaturas extremas”. Por isso, muitos operários adoecem a ponto de não conseguirem retornar aos postos de trabalho e pedem aposentadoria por invalidez.

*Os nomes Pierre e Cláudia foram alterados para preservar a identidade das fontes.





 
 
 

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